Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1116/14.1TJBNF.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
SEPARAÇÃO DE BENS
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
POSSE
PRESUNÇÃO DE COMPROPRIEDADE
BENS MÓVEIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- A união de facto, por si só, não é título ou modo jurídico legalmente reconhecido para a aquisição do direito de propriedade.
II- Assim, havendo uma lacuna na lei, susceptível de preenchimento por analogia, relativa à aplicação à união de facto dos regimes de bens do casamento que, ela deve ser preenchida por recurso ao regime de separação de bens, já que neste regime há bens próprios e bens em compropriedade, estabelecendo a lei uma presunção nesta matéria.
III- A presunção de compropriedade contida no artigo 1736, nº 2, do C.C., será de aplicar quando se suscitem dúvidas sobre a propriedade exclusiva de qualquer dos cônjuges, e em que também não resultem demonstrados factos dos quais se possa inferir o exercício da posse por parte de qualquer deles, situação em que prevalecerá a presunção desta resultante, prevista no nº 1, do artigo 1268, do mesmo diploma.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: AA
Recorrido: BB
Tribunal Judicial de Fafe – Instância local, Secção Cível, J1.

BB intentou contra AA a presente acção de condenação com processo comum, alegando como fundamento e, em síntese, que procedeu ao pagamento, durante o período em que coabitou com o R. em condições análogas às dos cônjuges, de obras de restauro de uma construção propriedade deste último onde ambos projectaram constituir seu lar, no valor global de 12 829 €.
Alega que tais obras geraram o aumento do valor do referido imóvel em 25 000 €, pelo que pede a condenação do R. a pagar-lhe esta quantia (ou, subsidiariamente, os aludidos 12 829 €).
Pede ainda que o R. seja condenado a entregar-lhe dois electrodomésticos sua propriedade que levou para o referido imóvel (ou o valor correspondente).
Contestou o R., impugnando a matéria invocada a título de causa de pedir, alegando, designadamente, que as quantias aludidas pela A. não seriam sua (da A.) propriedade, constituindo antes indemnização pela parda total de viatura sua (do R.) propriedade.
Mais referiu nada ter a opor à entrega dos electrodomésticos acima referidos.
Deduziu ainda reconvenção, a qual não foi admitida.
Proferiu-se despacho saneador, com indicação do objecto do processo e selecção dos temas da prova.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença onde, após responder à matéria de facto controvertida, na parcial procedência da acção, se decidiu:
- Condenar o R. a pagar à A. a quantia de 11 010,42 € (onze mil e dez euros e quarenta e dois cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, a contar da data da citação e até integral pagamento;
- Condenar o R. a entregar à A. a máquina de lavar roupa e o frigorífico aludidos no nº 29, dos “factos provados”.
Inconformado com tal decisão, apela o Réu, e, pugnando pela respectiva revogação, formula nas suas alegações as seguintes conclusões:
“A) Entre autora e réu existiu uma união de facto entre Julho de 2009 e Fevereiro de 2013.
B) Durante essa relação de união de facto, autor e réu reconstruiram um imóvel que pertencia, em exclusivo, a este.
C) A autora pagou, de uma conta titulada por si, 11.010,42 € para parte da reparação.
D) Autora e réu defenderam teses diferentes sobre a origem do dinheiro que foi utilizado para pagar estes 11.010,42 € de reparação, não tendo o Tribunal “a quo” considerado qualquer uma das versões daqueles, por ausência de prova, conforme se alcança da fundamentação de facto da sentença: “Conforme resulta da matéria provada, nenhuma das versões apresentadas foi considerada demonstrada. Tal sucedeu porque o Tribunal não conseguiu suplantar o estado de dúvida em que permaneceu perante a prova produzida.”
E) Face à ausência de prova, o Tribunal “a quo” entendeu recorrer à presunção dos artigos 1252º, nº 2 e 1268, nº 1 do CC, e presumiu a propriedade do dinheiro que pagou os 11.010,42 € ser da autora.
F) Não concordamos com a utilização desta presunção pelo Tribunal “a quo”.
Vejamos:
G) O Tribunal “a quo” não teve em conta o tipo de relação existente entre autora e réu, no período em que as obras foram efectuadas, isto é, Julho de 2009 a Fevereiro de 2013.
H) Nesta data, vigorava entre autora e réu, por vontade destes, a união de facto.
I) Aquando da extinção de uma relação em união de facto deverá vigorar um regime de partilha do património que, entretanto, os “unidos” construíram.
J) Defendemos, talqualmente a doutrina seguida por Cristina Dias e jurisprudência o Acórdão da Relação de Guimarães de 29/09/2004 citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Maio de 2011, e no que concerne à propriedade dos bens, dever-se aplicar o regime de casamento da separação de bens à união de facto.
K) Isto é, nos casos desta jaez, deve-se aplicar o artigo 1736º do Código Civil, nomeadamente, a presunção do nº 2.
L) Resultou provado nos autos, que autora e réu viviam em comunhão de cama, mesa e habitação como que se de marido e mulher fossem, isto é, em condições análogas à dos cônjuges;
M) Mas não resultou provado que cada um efectuava o pagamento da sua parte das despesas, o que faz concluir “a contrario sensu” entre os dois, também, existia comunhão de economia.
N) Nos termos do nº 2 do artigo 1736º, em caso de dúvidas sobre a propriedade exclusiva de um dos cônjuges, “os bens móveis ter-se-ão como pertencentes em compropriedade a ambos os cônjuges.”
O) E muitas dúvidas existiram nos autos, até porque o próprio Tribunal, na tese que defende – e como supra já se transcreveu na conclusão D –, teve que recorrer a presunções legais para concluir sobre a propriedade do dinheiro, uma vez que as partes não lograram provar as suas versões.
P) Sendo a presunção do artigo 1736, nº 2 especial em relação à dos artigos 1252º, nº 2 e 1268, nº1 do C.C., aquela deverá prevalecer sobre esta.
Q) Dúvidas não existem de que o dinheiro é coisa móvel!
R) Desta feita, o empobrecimento da autora não foi dos 11.010,42 apurados pelo Tribunal “a quo”, mas de metade deste valor, uma vez que tal valor era compropriedade de autora e réu.
S) Será este valor de 5.505,21€, o montante da obrigação que o réu terá de restituir à autora, nos termos do regime do enriquecimento sem causa;
T) Valor com base no qual deverá a sentença recorrida ser revogada por Acórdão que absolva o réu parcialmente do pedido”.
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A Apelada apresentou contra alegações concluindo pela improcedência da apelação interposta.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Do objecto do recurso.
Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:
- Analisar da existência ou não de uma presunção de compropriedade do valor monetário despendido nas obras efectuadas no imóvel.
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III- FUNDAMENTAÇÃO.
Fundamentação de facto.
A factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida é a seguinte:
Factos Provados.
1- Autora e Réu mantiveram uma relação de namoro, no período de tempo compreendido entre Julho de 2009 e Fevereiro de 2013.
2- Tendo vivido um com o outro em comunhão de cama, mesa e habitação, como se marido e mulher fossem.
3- Dessa relação nasceu no dia 30.08.2011, um filho de nome Martim Soares Andrade.
4- Durante o período de coabitação, Autora e Réu chegaram a ter a sua residência comum num apartamento, localizado próximo da actual residência do réu, arrendado para esse fim.
5- O réu é dono de um prédio urbano composto de casa de habitação de cave e rés-do-chão, com logradouro, sito na Av. Av, freguesia de Landim, inscrito na respectiva matriz sob o artigo xxx e descrito na Conservatória do registo predial de Famalicão sob o nº xxxxx.
6- Deste prédio faz parte integrante um anexo.
7- À data em que autora e réu viviam no referido apartamento, os pais do réu residiam no supra identificado prédio.
8 - Tendo em conta que a união de facto se apresentava estável e sendo boas as relações com os pais do réu, autora e réu pensaram na possibilidade de irem habitar o tal anexo,
9 - Com as vantagens de poupar na renda de uma habitação e beneficiar das condições proporcionadas por uma moradia independente e com logradouro.
10 - Além disso, a presença da mãe do réu constituía um apoio nos cuidados com o filho de ambos.
11 - Contudo era necessário efectuar obras nesse anexo para lhe conferir condições de habitabilidade
12 – Assim, com a colaboração do réu, a A. contratou os trabalhos a realizar com uma empresa de construção civil denominada “CC”.
13- Durante o mês de Agosto de 2012, DD, representante daquela empresa, apresentou à autora um documento com a lista dos trabalhos a executar, que eram:
a) Demolição do telhado;
b) Abertura de roços para tubos de esgoto e águas limpas;
c) Cobertura de toda a área do chão com cascalho e betonilha;
d) Electricidade geral;
e) Pintura geral;
f) Assentamento de louças sanitárias ou cerâmicas gerais.
14- Com a discriminação destes trabalhos não foi de imediato fixado o preço, que seria combinado posteriormente.
15- À excepção do preço de tectos e paredes em “pladur”, que era de 16,00€ por metro quadrado.
16 - A e R. acordaram com o aludido DD que os valores referentes ao preço daqueles trabalhos seriam pagos em numerário, assim que solicitado.
17 - O réu deu a sua concordância à realização dos descritos trabalhos, os quais foram executados.
18 - O referido DD demoliu o telhado, alterou o formato das janelas, abriu rotas para água, para saneamento, para a colocação da nova estrutura de electricidade, fez divisórias em “pladur” para dois quartos, uma casa de banho, sala e cozinha.
19 - Na sequência deste acordo, a A. entregou ao Sr. DD, à medida que os trabalhos foram decorrendo, as seguintes quantias, no total de 7 500 €, que se encontravam depositadas em conta bancária titulada pela A.:
a) 1.000,00€, em 5 de Setembro de 2012, sendo 600,00€ por transferência bancária e 400,00€ em numerário;
b) 2.500,00€, em numerário, em 11 de Setembro de 2012;
c) 500,00€, em numerário, em 19 de Setembro de 2012, destinado ao pagamento de material eléctrico;
d) 2.500,00€, para pagamento de “pladur”, em 27 de Setembro de 2012;
e) 1.000,00€, em 4 de Outubro de 2012.
20 - Além dos trabalhos efectuados pelo aludido DD, foi também executado, em todas as divisórias, um pavimento flutuante, sendo que no chão do “WC” foi colocado flutuante “water resistente”, que era mais caro mas resistente à água.
21 - A aplicação foi feita por uma pessoa conhecida do réu, de nome não concretamente apurado, que foi pago a €: 6,00 à hora.
22 – Na casa de banho foram aplicados espelhos até ao tecto.
23 – Foram igualmente colocados na casa de banho uma base de chuveiro, uma sanita e um lavatório com base em “inox” brilhante de apoio às toalhas.
24 - Nos quartos foi aplicado um degrau, sendo que o espaço foi aproveitado para arrumação e era revestido a madeira.
25 - Na cozinha foram aplicados móveis fabricados à medida e embutidos, com uma bancada preta em vidro temperado preto, também feita à medida, para além dos electrodomésticos que foram embutidos, designadamente, placa, forno e microondas.
26 - Antes da realização destas obras, o anexo era um espaço onde havia funcionado a oficina de serralharia do pai do réu, EE, sendo amplo, com entulho no interior, sem placa, telhado de “usalite”, janelas quadradas e um portão no acesso à rua.
27 - Realizados estes trabalhos e aplicado o material, o anexo passou a ter condições de habitabilidade e a autora, réu e filho de ambos fixaram nele a sua residência.
28 – Em Fevereiro de 2013, autora e réu separaram-se, tendo a autora e o filho de ambos deixado aquele local.
29- A autora transportou para o anexo, com vista ao uso comum, um frigorífico e uma máquina de lavar roupa.
30 – Além das quantias entregues a DD aludidas em 19), a A. entregou ainda a “Leroy Merlin Bricolage, SA” as quantias de 25 €, 1 134, 04 €, 686 €, 880,06 €, 50,04 € e 555,50 € e a “Vidrave, Lda.” a quantia de 179,78 €, no total de 3 510,42 €, referentes a materiais aplicados nas obras do anexo.
31 - Na remodelação do anexo, com a realização dos trabalhos e com a aquisição dos materiais e dos electrodomésticos aludidos em 18) e em 20) a 25) foi despendida quantia não concretamente apurada mas situada entre 11 010,42 € e 18 658,90 €.
32 - Antes da realização das obras, o anexo tinha o valor de 10 800 €.
33 – Após a realização das obras e da aplicação dos materiais acima mencionados, o anexo passou a valer 25 200 €.
34 - Os materiais acima aludidos foram incorporados no anexo.
35 - O eventual levantamento dos aludidos materiais causaria danos nos mesmos e no próprio anexo.
36- Os electrodomésticos acima aludidos têm medidas padronizadas, tendo o mobiliário em que os mesmos se encontram embutidos sido feito à medida dos referidos electrodomésticos.
37 - A autora entregou as quantias supra referidas tendo em vista a sua vida comum com o réu e na perspectiva da sua continuação.
38 – Em 2-12-2011, o R. entregou 2 500 € à à empresa “Flypremium automóveis, Lda.” , a título de preço de aquisição de um automóvel de marca “BMW”, modelo “525 D”.
39 – Nesta data, o R. já iniciara a relação amorosa com a A., partilhando residência com esta.
40 – A A. é a tomadora do seguro do referido veículo, efectuado na “Logo Seguros”.
41 – Em data não concretamente apurada, o referido automóvel foi furtado.
42 – Nesta sequência, em 14-5-2012, a seguradora “logo, SA”, nos termos do contrato de seguro celebrado, procedeu ao pagamento à FF da quantia de 12 620,80 €.
Factos não provados:
1 – As quantias aludidas em 19), 30) e 31) dos “factos provados” resultam de crédito bancário contraído pela A. para esse efeito, bem como de economias por si realizadas, do vencimento auferido no exercício da sua profissão e de donativos de sua mãe.
2 – A A. pagou o preço dos espelhos, a base do chuveiro, a sanita e o lavatório aplicados na casa de banho.
3 – GG, mãe do A., pagou o preço dos espelhos, a base do chuveiro, a sanita e o lavatório aplicados na casa de banho.
4- O frigorífico e a máquina de lavar roupa que a autora transportou para o anexo têm o valor de 2.000,00 €.
5 – O R. recusa-se a entregar o frigorífico e a máquina de lavar à A..
6 – Durante o relacionamento, A. e R. efectuavam o pagamento da sua parte das despesas.
7 – O A. declarou comprar o referido veículo “BMW” e “Flypremium” declarou vender-lho.
8 – O R. efectuou o seguro automóvel do referido veículo na “Seguros Logo, SA”, com a anuência da A., em nome desta última, uma vez que dessa forma usufruiria de um preço mais reduzido.
9 – Por acordo entre A. e R. e por exigência da companhia de seguros, o referido valor de 12 620,80 € pago na sequência do furto do veículo foi transferido para a conta da A., pois o referenciado seguro encontrava-se em nome desta.
10 – Os referidos 12 620,80 € permaneceram na conta da A., tendo os mesmos sido utilizados, com a anuência do R., para pagamento das quantias aludidas em 19), 30) e 31).
Fundamentação de direito.
Como fundamento da pretensão que deduz alega o Recorrente, em síntese, que devendo-se aplicar o regime de casamento da separação de bens à união de facto, no que concerne à propriedade dos bens, à presente situação será aplicável o artigo 1736º do Código Civil, nomeadamente, a presunção do nº 2.

Assim, considerado, por um lado, que logrou demonstrado que autora e réu viviam em comunhão de cama, mesa e habitação como que se de marido e mulher fossem, isto é, em condições análogas à dos cônjuges, e, por outro, que não resultou provado que cada um efectuava o pagamento da sua parte das despesas, o que faz concluir “a contrario sensu” entre os dois, também, existia comunhão de economia, em caso de dúvidas sobre a propriedade exclusiva de um dos cônjuges, “os bens móveis ter-se-ão como pertencentes em compropriedade a ambos os cônjuges”, conforme dispõe o citado preceito.

Daí decorre, em seu entender, que, a terem existido dúvidas nos autos, como de facto existiram, pois o próprio Tribunal, na tese que defende, teve que recorrer a presunções legais para concluir sobre a propriedade do dinheiro, dado as partes não terem logrado demonstrar as suas versões, sempre a presunção contida no artigo 1736, nº 2, do C.C., que é especial em relação à dos artigos 1252º, nº 2 e 1268, nº1, do mesmo diploma, deveria ter prevalecido sobre esta, e logo e por decorrência, que o empobrecimento da autora não foi dos 11.010,42, como considerou o Tribunal “a quo”, mas sim de metade deste valor, uma esse montante global era compropriedade de Autora e Réu.

A este propósito começaremos, desde já, por referir que também nós perfilhamos a posição contida no acórdão do S.T.J., de 31/05/2011, onde expressamente se refere, “a propósito da aplicação à união de facto dos regimes de bens do casamento“ que, a entender-se haver lacuna susceptível de preenchimento por analogia, e esta ser possível, sempre deveria ser por recurso ao regime de separação de bens […]. De facto, neste regime há bens próprios e bens em compropriedade, estabelecendo a lei uma presunção nesta matéria, no artigo 1736.º,nº2.
Em matéria de titularidade e partilha dos bens, a solução não diferirá significativamente da encontrada para a união de facto (onde, a haver bens comuns, serão em compropriedade e não em comunhão), com a única vantagem de, naquele regime, haver a presunção referida quanto aos bens móveis.
Quanto aos bens imóveis, no regime da separação de bens (e na união de facto), cada um deles será daquele que aparecer como seu titular e se o outro contribui para a sua aquisição tê-lo-á de provar invocando um crédito face ao outro cônjuge a exercer nos termos gerais do direito das obrigações.
Há, portanto, o recurso às regras gerais e, havendo enriquecimento de um cônjuge em detrimento do outro, poderá aplicar-se o instituto do enriquecimento sem causa. A haver alguma similitude seria com o regime de separação de bens” (Cadernos de Direito Privado, n.º 11, Jul./Set. 2005, pág. 76 da anotação ao Ac. da Relação de Guimarães de 29-9-2004,P. 1289/04) [1].

Mas o que se nos não afigura é que, com fundamento nessa posição, se possa, desde logo e sem mais, extrair para a presente situação que o valor em dinheiro em causa nos autos seja compropriedade de Autora e Réu, como pretende o Recorrente.

Consequência da própria complexidade e diversidade das situações de vida que se destina a regular, o regime de divisão de bens nos regime da separação – e na união de facto - reveste-se também de uma considerável complexidade jurídica, já que pode abranger numa só situação, diversos institutos jurídicos, revelando-se, por isso, de alguma dificuldade a concepção abstracta de um regime abrangente, sendo mais aconselhável, e até mais do que noutras situações, partir da análise factual da concreta situação para a determinação das regras ou do regime aplicável.

E, por decorrência dessa mesma complexidade das situações de vida, como refere no Acórdão do S.T.J., de 14/04/2015, tem-se vindo a questionar “(…) se, mesmo no regime de separação de bens, o cônjuge que, na ausência de um contrato de mútuo, por exemplo, adquire, ainda que em nome próprio, imóveis, com dinheiro que é também do outro, não o fará antes na execução de um mandato tácito [2] e se não corresponderá à vontade das partes que a utilização de dinheiro dos dois cônjuges corresponda a uma aquisição para os dois.
Na verdade - como aí se refere -, perguntámo-nos se não assistirá razão a MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER quando afirma que “[mesmo nos regimes de separação de bens] na maior parte dos casos, a comunhão de vida acaba por provocar uma interpenetração de facto dos bens”[3] ou, como afirma um Autor alemão citado por aquela Autora, a obrigação de comunhão de vida implica que os cônjuges levem a cabo “realizações económicas conjuntas” [4].
Recorde-se, de resto, que a separação de bens nem sequer é obstáculo a que um dos cônjuges possa contrair dívidas que responsabilizam o outro por serem em proveito comum do casal [5][6] .

Como é sabido, no regime de separação de bens não existem bens comuns, mas apenas bens em compropriedade.

Ora, num caso, como o presente, de união de facto, havendo apenas um titular da conta bancária, e nada se tendo demonstrado que, de um modo directo, permita conclui sobre a propriedade do valor depositado, como resolver a situação?

Como é consabido, no que concerne às contas bancárias haverá de distinguir entre a titularidade da conta e a propriedade das quantias depositadas, distinguindo-se, assim, entre a titularidade “jurídica“ e a titularidade “económica” da conta, pois que, o poder de disposição deriva exclusivamente do contrato celebrado com o banco, uma vez que o contrato de depósito se caracteriza por uma “dupla disponibilidade das quantias entregues ao banco”, na medida em que o banco adquire a propriedade do dinheiro depositado, conservando o depositante a disponibilidade dos fundos depositados, com o poder de exigir a restituição.

Daqui resulta que a questão da propriedade da quantia de depósito bancário é distinta e independente do regime de movimentação dos depósitos (solidária, conjunta ou mista, consoante for acordado).

E, como a questão da propriedade do valor em depósito é independente do regime de movimentação dos depósitos, tem-se vindo a entender que, na existência de vários titulares, e na situação de se não demonstrar a propriedade da quantia depositada (que pode ser demonstrado ser exclusiva apenas de um dos seus titulares), entende-se que há uma presunção legal de compropriedade em partes iguais dos valores depositados, sendo que, essa presunção, embora se não encontre genericamente afirmada na lei para os casos de depósitos bancários com pluralidade de titulares, retira-se do regime definido pelos artigos 512º e 516º, do Código Civil, relativos às “obrigações solidárias” [7].

Deste último preceito resulta, assim, que, em caso de pluralidade de credores solidários, nas relações entre si, presume-se que os credores solidários comparticipam em parte iguais no crédito.

Como resulta da materialidade supra descrita, resultou demonstrado que que as quantias aludidas nos factos 19) e 30) se encontravam na posse da A., já que terão provindo de conta bancária por si exclusivamente titulada, tendo ela actuado sobre as mesmas por forma correspondente ao exercício de direito de propriedade, designadamente, dispondo das mesmas para efectuar tais pagamentos.

Assim, e em primeiro lugar, cumprirá referir que, como consta da decisão recorrida, a propósito de tais quantias, nenhuma das versões apresentadas foi considerada demonstrada, ou seja, quer que tais quantias tivessem tido origem em crédito bancário que contraiu e em poupanças do seu vencimento, como alegou a A., quer que tais quantias sejam provenientes de pagamento de indemnização, como alegou o R., não tendo o tribunal conseguido suplantar o estado de dúvida em que permaneceu, perante a prova produzida.

Perante isto, a factualidade demonstrada, que se não revelou concludente no sentido de atribuir a propriedade exclusiva do dinheiro gasto a qualquer das partes, permitiu apenas concluir que, durante a união de facto, foi gasto dinheiro retirado de conta bancária exclusivamente titulada pela A., e que serviu para incrementar o valor de um dos activos do R., o anexo supra referido.

Sendo certo que a união de facto, por si só, não é título ou modo jurídico legalmente reconhecido para a aquisição do direito de propriedade, prevê o n.º 2 do artigo 1736º do Código Civil, que, “Quando haja dúvidas sobre a propriedade exclusiva de um dos cônjuges, os bens móveis ter-se-ão como pertencentes em compropriedade a ambos os cônjuges.”

Todavia, em nosso entender esta presunção de compropriedade encontra o seu âmbito de aplicação naquelas situações em que não seja sequer possível determinar quem esteve na posse do concreto bem móvel, cuja propriedade se discute e pretende determinar, pois que, de modo algum se pode entender que esta presunção se possa sobrepor ou fazer letra morta da própria presunção de propriedade que decorre da demonstração da posse, que pode ser exercida apenas por uma das partes, e logo, de modo exclusivo.

A demonstração da titularidade do direito de propriedade deve fazer-se pela prova do facto jurídico constitutivo do mesmo, o que implica a demonstração da aquisição originária desse direito, ou pela prova de factos que a lei reconheça como suficientes para presumir a existência dessa titularidade – a posse (artº 1268º, nº 1, do C.C.) e o registo (artº 7º, do C.R.P.).

Resultando demonstrada a posse, legalmente definida como sendo “o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (rectius: do direito real correspondente a esse exercício), enquanto situação de facto juridicamente relevante, dela resulta uma presunção de titularidade do direito - artº. 1268º., do Cód. Civil. [8]

Como defende o Rodrigues Bastos, só a posse de boa fé é que faz presumir a titularidade do direito real sobre a coisa por na maior parte dos casos ser o titular do direito quem a possui. Assim gozando o possuidor da presunção da titularidade do direito – artº. 1268º. – “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem poderes de facto sobre uma coisa” [9]

O ordenamento jurídico protege assim a situação de posse, quando a presunção da titularidade que desta resulta é prioritária, ou seja, o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrem, presunção prioritária, fundada em registo anterior ao início da posse, ou se estiver provado que os bens pertencem a outra pessoa.

Não tendo o Réu logrado provar que as quantias eram sua propriedade, restou a prova duma situação possessória, por parte da A., de tais quantias que, como se refere na decisão recorrida, terão provindo de conta exclusivamente titulada em seu nome, e com as quais efectuou pagamentos, situação de posse essa que permite concluir pela verificação da presunção de que o respectivo direito de propriedade sobre tais valores pertence ao possuidor, ou seja, no caso, à A. - artº 1268º, nº 1, do C.C..

E como é óbvio, demonstrados factos que conduzem ao preenchimento de uma situação de posse exclusiva e, portanto, de presunção de titularidade do direito na esfera jurídica do seu titular, não poderá uma tal presunção ser afastada pela aplicação de uma outra que considera terem-se como pertencentes em compropriedade a ambos os cônjuges, quando se suscitem dúvidas sobre a propriedade exclusiva de um dos cônjuges.

Esta última presunção será sim de aplicar quando se suscitem dúvidas sobre a propriedade exclusiva de qualquer dos cônjuges e em que também não resultem demonstrados factos dos quais se possa inferir o exercício da posse por parte de qualquer deles, ou seja, em que se não demonstre o exercício de poderes de facto, por parte de um deles, sobre o objecto correspondente ao exercício do direito.

Com efeito, e convirá mais uma vez realçar, a demonstração da titularidade do direito de propriedade, além de se fazer pela prova do facto jurídico constitutivo do mesmo (aquisição originária), pode também ser efectuada mediante a prova de factos que a lei reconheça como suficientes para presumir a existência dessa titularidade, ou seja, através da prova da posse (artº 1268º, nº 1, do C.C.).

Verificando-se um caso de concurso de presunções, o mesmo é resolvido pelo disposto no citado artº 1268º, nº 1, do C.C., no qual se prescreve que “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao da posse”, ou seja, nesta colisão de presunções prevalece a mais antiga e, em caso de igualdade na antiguidade, prevalece a posse.

Ora demonstrada esta posse, e como se refere na decisão recorrida, face ao disposto no art. 350º, nº 1, do CC, estava a A. dispensada de provar a específica origem das quantias assim despendidas (designadamente, que as mesmas eram provenientes de mútuo contraído para o efeito, do seu vencimento ou de donativos de familiar), cabendo ao R. ilidir tal presunção de titularidade do direito de propriedade pela A, através da prova do contrário (e não por mera contraprova, nos termos do art. 346º do CC - ou seja, não podia apenas tornar tais factos duvidosos), conforme decorre dos arts. 350º, nº 2, e 347º do CC.

Sucede, que, como aí também se refere, o R. não o logrou fazer, pois que, R. não demonstrou qualquer participação na titularidade de tais quantias, designadamente, que as mesmas corresponderiam à indemnização paga pela “Logo Seguros” pela perda total de veículo alegadamente sua propriedade (cfr. factos não provados nºs. 7 e segs.).

Improcede, assim, a presente apelação, com a consequente confirmação da decisão recorrida.

IV- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Apelante.

Guimarães, 19/ 01/ 2017.
Processado em computador. Revisto – artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
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Jorge Alberto Martins Teixeira

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José Fernando Cardoso Amaral.

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Helena Gomes de Melo.


[1] Cfr. Acórdão do S.T.J., de 31/05/2011, proferido no processo nº 22/09.2TBVFC-A.L1.S1, in www.dgsi.pt.

[2] Sobre a utilização neste contexto, pelas jurisprudências alemã e francesa de contratos tácitos (mandato tácito e sociedade tácita) cfr., por todos, MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Almedina, Coimbra, 2000, pp. 466 e ss., que refere, aliás, a proposta de uma parte da doutrina germânica de reconhecer aqui um contrato sui generis de cooperação.
[3] Cfr. MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, ob. cit,, p.453.
[4] Cfr. CHRISTIAN ROTHEMUND, cit apud MARIA RITA ARANHA DA GAMA LOBO XAVIER, ob. cit., p.457, n.49.
[5] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/4/2008 (PEREIRA DA SILVA): “O proveito comum do casal inerente às dívidas a que se reporta a alínea c) do n.º1 do art. 1691.º do Código Civil pode verificar-se mesmo no regime de separação de bens”.
[6] Cfr. Acórdão do S.T.J., de 14/04/2015,proferido no processo nº 3/11.0TBOHP.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[7] Cfr., por ex., P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, vol.I, pág.532, Ac do STJ de 26/10/04, de 11/10/05, disponíveis em www dgsi.pt.
[8] Cfr. o Prof. ORLANDO DE CARVALHO em “Introdução à Posse”, R. L. J., ano 122º., págs. 104 e sgs
[9] Cfr. “Direito das Coisas”, I, 1975, pág. 40 e Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 14/05/1996.